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XENOFOBIA NO SUL DO PAÍS: VEREADOR GAÚCHO ANTI-BAIANO PODE PERDER O MANDATO

por Redação

Originário do grego antigo, o vocábulo “vereador” vem da palavra “verea”, que significa vereda, caminho. Dentre as figuras que compõem o sistema de representação política da população brasileira, o vereador tem a função de intermediar o diálogo entre o governo municipal e o povo. Sendo assim, o vereador seria o que vereia, trilha, ou orienta os caminhos dos munícipes que representa. Mas essa função tão importante teria limite de atuação?

Como forma de proteger o sistema democrático, o legislador foi bastante inteligente ao definir limites para a atuação dos representantes ocupantes de cargos eletivos, tudo isso como forma de blindar a sociedade de eventuais abusos cometidos por quem, um dia, teve a confiança de ser eleito democraticamente.

Nas últimas semanas os brasileiros vêm acompanhando, através dos noticiários, a situação crítica das 207 vítimas de trabalho análogo à escravidão em vinícolas, resgatadas em operação no município de Bento Gonçalves, no estado do Rio Grande do Sul. O que se espanta, é que dos 207 trabalhadores, 194 são Baianos.

É bem verdade que a carga da colonização no Brasil ainda é suportada, em grande maioria, pela população nordestina, carente de renda, escolaridade, infraestrutura, além de concentrar, evidentemente, o maior número de brasileiros negros.

Isso se dá ao fato de que após a oficialização da abolição da escravidão, muito embora tenha sido ato positivo e necessário, não existiu adequada reintegração da população escravizada à sociedade. A grande concentração de escravos no território nordestino, principalmente na Bahia, ainda faz com que essa parte do mapa do Brasil sofra com a ausência de estruturação para inserção dos ex-escravos e seus descendentes em determinadas camadas sociais.  

Com efeito, a Lei Áurea[1] era composta apenas por dois artigos, um declarava extinta a escravidão no Brasil a partir daquela data e o segundo apenas revogava as disposições em contrário.

Não foram criadas políticas ou definidos mecanismos de reparação social que pudessem estruturar e dar direcionamento àquelas pessoas que viveram escravizadas durante tanto tempo, situação que gerou, consequentemente, acentuado grau de vulnerabilidade econômica, social e histórica ao povo negro baiano, ainda evidente nos dias atuais.

Tais mazelas poderiam e estão sendo minimizadas pelos próprios nordestinos, muito pela força de vontade e honradez, pelo trabalho árduo do dia a dia (se submetendo, inclusive, a situações de vulnerabilidade), pela vontade de vencer e de lutar contra as desigualdades financeira e racial.  

No entanto, circunstâncias causadas por indivíduos isolados enfraquecem esse movimento de ascensão do nordestino e, nesse caso específico, dos baianos. A situação piora, quando um desses indivíduos é vereador, que deixa de cumprir com o dever de legislar e representar o povo, para atacar os baianos, negros e nordestinos em sua essência.

Refiro-me ao Vereador do Município de Caxias do Sul, Sandro Fantinel, atualmente sem partido, que no último dia 28 de fevereiro 2023, protagonizou um discurso Xenofóbico, no plenário da câmara de vereadores, em sessão transmitida pela internet para todo o mundo. O referido ato, além de aspectos Xenofóbicos, o vereador faz apologia e indução ao trabalho escravo.

As consequências jurídicas do discurso do vereador Gaúcho já eram esperadas desde o ano passado, após a proclamação dos resultados das eleições gerais. Por conta disso, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, passou a considerar, em dezembro de 2022, como racismo, os atos que discriminam brasileiros que vivem no Nordeste. A lei n° 9.459/97[2] estabelece que pode ser penalizado o indivíduo que praticar, induzir, incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Ou seja, a Xenofobia passou a ser considerada racismo, crime imprescritível e inafiançável, punível com pena de dois a cinco anos de reclusão.

No âmbito do direito eleitoral, podemos afirmar categoricamente que, além de já ter sido expulso do Partido Patriotas, pelo qual foi eleito, o vereador poderá ter o seu mandato cassado.

Isso porque, o legislador estabeleceu que a Câmara poderá cassar o mandato de Vereador, em três hipóteses, quais sejam quando o vereador utilizar do mandato para a prática de atos de corrupção ou de improbidade administrativa, quando fixar residência fora do Município ou quando proceder de modo incompatível com a dignidade, da Câmara ou faltar com o decoro na sua conduta pública.

O vereador claramente faltou com o decoro em relação aos trabalhadores submetidos à condição análoga à escravidão, aos seus colegas de parlamento, ao povo do Rio Grande de Sul, ao povo baiano, ao povo nordestino e aos negros brasileiros. Para Carla Costa Teixeira[3]: “compreensão de que, no universo da honra, a conduta desonrada não se esgota no indivíduo que a cometeu, mas compromete todo o coletivo a que ele pertence. Pois se um membro partilha da honra de seu grupo, e com este se identifica predominantemente, a sua desonra se reflete sobre a honra de todos. Havia, assim, uma honra coletiva a ser preservada, que encontrou expressão na noção de decoro parlamentar.”

No caso em apreço, a conduta Xenofóbica do Vereador Sandro Fantinel, ocasionou, além de instauração de investigação pelo Ministério Público/RS, representação do Ministério Público da Bahia e numa petição on-line em prol da cassação que já acumula 6,5 mil assinaturas, na formalização de quatro denúncias, por seus colegas vereadores, ao Comitê de Ética da Câmara dos Vereadores de Caxias do Sul, as quais trazem como principal fundamento, a quebra de decoro e o fato de tal atitude não condizer com o cargo por ele ocupado. 

Trocando em miúdos, a cassação do mandato pela Câmara de vereadores, por quebra de decoro parlamentar, é uma questão política, haja vista que cabe exclusivamente ao parlamento, impossibilitando o judiciário conhecer sobre o mérito da cassação, ou seja, se houve ou não efetiva quebra de decoro parlamentar. Nesse aspecto, existem quatro possibilidades de resultado: censura, suspensão por tempo determinado, cassação do mandato ou absolvição.

Apesar do Supremo Tribunal Federal entender, em vários julgados, que a valoração da decisão da Casa Legislativa para a conduta contrária à ética e ao decoro parlamentar é uma questão interna corporis, se vê no âmbito da Justiça Eleitoral parlamentares vencidos na esfera política, tentando a perpetuação de seu mandato no judiciário, invocando razões jurídicas para obstar o julgamento político de seus pares, justamente pelo fato do judiciário não conhecer do mérito da cassação durante o processo político.

Essa manobra pode ser feita pelo Vereador “anti-baiano” após a decisão da câmara de Caxias do Sul, na tentativa de permanecer no cargo até o final do mandato.

No entanto, mesmo que haja direitos subjetivos do próprio parlamentar em jogo, levando em consideração a gravidade das suas palavras, a ampla repercussão do discurso preconceituoso e difamatório, ocorrido em espaço público, por agente público, entendo que a cassação do mandato por quebra de decoro pela Câmara de vereadores de Caxias do Sul seja medida adequada, como forma de reprimir comportamentos racistas, fortalecer as minorias, inibir o estimulo ao trabalho escravo e preservar a democracia.


[1] Brasil. Lei Imperial n. 3.353, Lei Áurea. Rio de Janeiro: 1888. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/385454> Acesso em 01 de março de 2023

[2] Brasil. Lei n° 9.459/97, Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm> Acesso em 01 de março de 2023

[3] TEIXEIRA, Carla Costa. Decoro parlamentar: a legitimidade da esfera privada no mundo público? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 30, p.110-127, 1996.

Odilon Santos

Advogado e Consultor Jurídico, graduado pela Universidade Federal da Bahia. Pós-Graduado em Direito Eleitoral e em Licitações e Contratos Administrativos pela Faculdade Baiana de Direito. Membro da Comissão de Estudos sobre Diversidade Racial do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo – IBDA. Autor do Livro “Financiamento Eleitoral: O descompasso entre o novo sistema de doações de campanha e a cultura de arrecadação via fontes vedadas”.

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