Eleições no RS após enchentes ocorrem sob clima de descrença

Um ano após as primeiras enchentes no Rio Grande do Sul, que devastaram o Vale do Taquari, as eleições municipais ocorrem sob clima de descrença da população nas cidades mais atingidas pela tragédia.

Nas ruas de Roca Sales (a 143 km de Porto Alegre), no início de setembro, quase não havia evidências de uma campanha já em curso oficialmente. Entre os moradores, muitos dos quais perderam tudo duas vezes em menos de um ano, o sentimento era de indignação.

“Eu não voto em ninguém. Tu sabe por quê? Porque nós ficamos só com a roupa que tínhamos vestido. Nem pra comer não tinha. Eu tinha feito um ranchinho [compra de supermercado], e foi tudo, né? Tu acha que o prefeito ou um dos vereadores vieram pedir se faltava alguma coisa? Ninguém veio”, disse a moradora Zilda de Vargas, 81.

A funcionária pública Valquíria Regina Bazanella, 56, relata que a polêmica é grande em meio às histórias de doações perdidas e às reclamações de que faltou empenho dos políticos. “Espero que ninguém tenha coragem de vir à minha casa pedir voto.”

“Eu acho que nunca teve um clima tão difícil para a questão política. Tudo que aconteceu aqui desestruturou a todos, inclusive a mim, que a gente também é de carne e osso”, disse o prefeito de Roca Sales, Amilton Fontana (MDB).

“Sempre precisa ter um culpado. O prefeito é o primeiro. Aí tinha vereadores, ao invés de virem ajudar, ficavam filmando, procurando qualquer coisa errada para mostrar que o prefeito é incompetente. Isso deu uma descredibilidade para o setor público. A própria população está vendo hoje que eles poderiam ter me ajudado”, afirmou.

Fontana está em seu segundo mandato e não pode se reeleger. A cidade tem três candidatos, que prometem obras de reconstrução da cidade.

Em Cruzeiro do Sul (a 123 km de Porto Alegre), os protestos se misturam aos vestígios da tragédia. Em uma das poucas paredes que resistiram de pé no bairro Passo de Estrela, à beira do rio Taquari, moradores escreveram a frase “promessas vazias, cheias reais”.

Na cidade de Muçum (a 154 km da capital), uma das mais devastadas pela força da água, o prefeito, Mateus Trojan (MDB), concorre à reeleição e se diz confiante no reconhecimento da população. Mesmo assim, ele afirma que a campanha tem sido desgastante, tanto pelos embates com a oposição quanto pelos dramas humanos dos eleitores.

“Todo mundo na cidade tem uma história com as enchentes e quer compartilhar isso. São dramas enormes, histórias muito intensas. Mas, vamos lá, temos que encarar isso também.”

Em meio ao clima de descrença, a realização do pleito eleitoral tem atrasado as medidas de recuperação das cidades, seja por insegurança jurídica para autorizar gastos com obras, seja pela priorização das campanhas.

No campo das promessas, candidatos propõem como soluções a dragagem de rios (uma limpeza para manter ou ampliar a profundidade do canal), a realocação de casas ou a criação de sistemas de alerta para dar condições àqueles que querem continuar morando no mesmo local, apesar do risco.

O pesquisador Fernando Fan, professor do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), manifesta preocupação com promessas que geram esperanças na população, mas que não são as alternativas mais adequadas para o problema.

“Acaba sendo muito tentador para as pessoas seguirem quem faz essas promessas. Algumas promessas não necessariamente são exequíveis ou vão dar a solução. Essa é a minha preocupação em relação à conscientização. Nem todo mundo entende a complexidade que é, principalmente soluções estruturais. Não é simplesmente falar que vai fazer, ou ir lá e fazer sem consequências”, alerta.

Em Muçum, há uma aparente divergência no plano de realocação da cidade. O atual prefeito trabalha para mudar pelo menos 20% da área urbana consolidada, que corresponde aos locais onde houve maior destruição. Ao todo, 80% da cidade foi atingida pela água.

Seu adversário nas urnas, o engenheiro Marcos Bastiani (PSDB), mora em uma rua à beira do rio, justamente na fronteira da zona considerada de extremo risco. Em sua campanha, ele defende que os moradores tenham a escolha de sair ou não de suas casas.

“Quem tem opção e quiser ficar com o seu patrimônio em prédios, apartamentos, casas, que fique. Porque se vamos demolir tudo, terminou a cidade. Vamos viver onde?”, diz. Sua proposta é que as pessoas recebam treinamento para, em caso de nova enchente, deixem seus pertences em segurança e se dirijam a um abrigo.

Em Porto Alegre, o tema central é o sistema de proteção contra cheias, cujas falhas de projeto, de execução (por exemplo, diques construídos com altura menor que a prevista) e de manutenção ficaram evidentes nas imagens da capital alagada.

O atual prefeito, Sebastião Melo (MDB), tenta se sobrepor às críticas em busca da reeleição. Em entrevista à Folha no início de setembro, ele atribuiu a falta de manutenção do sistema também a seus antecessores, mas reconheceu que, quatro meses depois da tragédia, a cidade não tem estrutura para enfrentar uma calamidade semelhante.

“O sistema é o mesmo. Se chegar hoje uma chuvarada como chegou lá, não resiste de novo. As obras não estão prontas. Não tem como refazer dique da noite pro dia. O que eu botei foram bags, esses sacos de areia com cimento para proteger”, afirmou.

Segundo Melo, a prefeitura vai fechar definitivamente algumas comportas do muro que protege a capital e corrigir falhas do projeto original (por exemplo, diques que foram construídos com uma altura menor que a prevista), mas são obras que levam alguns meses. A elaboração de um novo plano de proteção contra cheias, contratada pelo município, pode levar anos.

“Acho que o povo já compreendeu que enchente não tem ideologia e não tem partido político. Ela inundou prefeituras do PT, do PSD, do MDB, do PDT, do PSB, de todos os partidos. Não tem ninguém que fica fora”, disse. “Não me eximo de responsabilidade, e o povo vai nos julgar.”

Principal adversária segundo as pesquisas, Maria do Rosário (PT) afirmou à Folha que a manutenção adequada do sistema teria evitado parte do prejuízo ocorrido em maio. “A cidade teria alagado, mas não na proporção em que alagou.”

Ela disse que, se eleita, vai colocar em lei o monitoramento periódico de serviços essenciais, como as casas de bombas que fazem a drenagem da cidade. Em sua proposta, o técnico responsável precisará assinar um laudo por mês, atestando o pleno funcionamento das máquinas.

A candidata também defende a realização de obras de recuperação e segurança, mas reconheceu que algumas ações requerem tempo. Por isso, ela diz que, se eleita, fará em paralelo um diagnóstico preciso da situação das famílias em Porto Alegre.

“Na eventualidade da cidade ter um novo evento, mesmo procurando que ela esteja mais protegida do que está hoje, onde tem bombas d’água que nós sabemos que não estão ainda 100% na condição de funcionamento, nós vamos chegar antes e saber para onde levar cada família”, disse.

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